
Nós
Us (EUA, 2019)
Portanto, assim diz o senhor: eis que trarei sobre eles o mal, de que não poderão escapar; e, se clamarem a mim, não os ouvirei.
Jeremias 11:11 abre esta narrativa com sua mensagem de desesperança e temor, antecipando, nas entrelinhas, a natureza trágica dos acontecimentos que acompanharemos. O diretor e roteirista Jordan Peele utiliza esta citação não de modo explícito, verbalizado, mas é sábio o bastante para, ao introduzi-lo, causar certa estranheza e desconforto. Multifacetada, a narrativa se abre à análise de naturezas diversas e que demonstram não apenas a habilidade de seu realizador em agregar nuances, mas também sua competência pelo domínio absoluto sobre a obra que pretende apresentar. De fato, tem a estrutura de filmes de gênero, no caso, suspense/horror, e que também passeia pelo drama e pela ficção científica; mas sua virtude mais eloquente é utilizar a linguagem como denúncia do caos e das profundas feridas sociais oriundas de uma sociedade marcada pelo capitalismo extremo, como é a dos Estados Unidos, mas que em outros níveis de interpretação também nos abraça.
Corra!, o qual rendera ao Peele o Oscar de Melhor Roteiro Original, já exibia tal acuidade ao eleger o racismo como fio condutor de uma trama macabra para quem o sente (como de fato é). Nós vai além sem deixar este comentário menor. Com efeito, as referências à cultura negra, que são maiores do que uma redução à cor de pele, estão presentes, em particular de forma mais óbvia na trilha sonora e expressas pelo hip hop e por seus versos precisos opondo-se a curiosa seletividade das operações policiais; estão também nas roupas que celebram o sucesso Thriller, de Michael Jackson, um dos maiores símbolos da cultura POP dos anos oitenta, e em último estágio nos macacões vermelhos de vários personagens fortemente inspirados pelo clipe dessa música.
Quem seriam estes personagens que vestem estes macacões vermelhos? Por que seriam equiparados, portanto, aos mortos-vivos? Também eles se conectam a Jeremias 11:11?
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Na trama, Adelaide (Lupita Nyong'o) cresceu angustiada por uma sombra, uma inquietação patológica e que se acentuara desde a chegada a sua casa de veraneio com seu esposo e filhos. Decidida a deixar o lugar e assombrada por suas memórias, Adelaide e sua família se veem reféns de um grupo estranha e notoriamente idênticos a eles, como cópias má intencionadas. Enquanto tenta se salvar deste grupo, autonomeados Sombras, Adelaide se vê em meio a uma esdrúxula rede de conspiração.
Sem querer ser muito específico mas também não podendo deixar de mencionar detalhes importantes, os Sombras não poderiam metaforicamente ser, senão, o reflexo maligno do que se entende por nossa própria natureza: são a sobra que transborda dos nossos egos e impulsos não filtrados, que coexistem em nós dualmente, mas que não veem a luz do dia. O exercício da vida em comunidade, de lançar mão da empatia, da justiça e da busca pelo que é bom, silencia-os, e expõe o vazio que significam. Equivalentemente, os Sombras (que têm uma misteriosa origem na experimentação científica) parecem coagir como sua face humana, interagindo entre si, porém, estéreis de significância limitando-se a emular uma vida que não é sua.
Não obstante, cabe fortemente uma reflexão que possa reunir termos como desigualdades sociais, equilíbrio de oportunidades e a democratização do conhecimento aos que estão à margem, em uma mesma frase. Observe que Adelaide e sua sombra tiveram a mesma capacidade de prosperar, e de, portanto, terem própria voz desde o momento que assumiram o mesmo lugar na sociedade. Enquanto o consumismo extremo ditar as regras calcadas numa utopia meritocrática, os eleitos ao submundo invisíveis às retinas do deus-capital permanecerão renegados a um mundo que também poderia ser deles. Curiosamente, Nós chega ao Brasil em um momento em que a “elite pensante” está assegurada de seus incentivos, e a falta de interesse pelos mais pobres pode ser, por exemplo, documentada por filmes como Arábia. Aqui, Jeremias 11:11 também se aplica.
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Do ponto de vista de filme de gênero, Peele faz uso de uma belíssima fotografia (caracterizada pelos contrastes e pelas sombras) e de um design de som eficiente para potencializar as sensações que busca. Este recurso fotográfico, que acentua os contornos mas esconde as feições, é muito bem-vindo pela ciência de que tememos muito mais aquilo que não podemos ver. Quantos filmes você já viu em que o vilão parece mais ameaçador antes de entrar em cena, apenas pela ideia que temos dele? Isto, por exemplo, é algo que Steven Spielberg concebeu bem em Tubarão, o qual é homenageado aqui também. Observe ainda que o diretor não se limita a estes recursos.
Por exemplo: enquanto acompanhamos Adelaide criança, frequentemente Peele nos coloca em primeira pessoa, isto é, assumimos o olhar da personagem a partir de um ângulo baixo, transformando a atmosfera em ameaçadora e constantemente tensa. Em especial, elementos como um parque de diversões, espelhos que multiplicam-se numa grande floresta, ao seu modo, e corujas, já são um forte indício de que o que se dará após pode não ter caráter real, sendo mais apropriado à fábulas. Além disso, o design de produção capricha ao colocar sobre a lareira da casa de Adelaide uma pintura que centraliza uma figura negra vestida de branco e vermelho. Do meu ponto de vista, talvez Peele tenha pecado no excesso de explicações ao longo do terceiro ato e no excesso de humor, ainda que possa por vezes parecer um “riso nervoso” e que claramente é uma característica sua, presente também no seu longa anterior.
Reconheça-se também que o elenco tem grande peso no resultado final. Nyong’o (Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por 13 Anos de Escravidão) é a estrela absoluta do projeto e se mostra comprometida e alinhada ao que o diretor concebeu. Mais do que isso, a família protagonista (Winston Duke, Evan Alex e Shahadi Wright Joseph) surpreende pela expressividade e versatilidade com que apresentam-se, e até mesmo Elisabeth Moss, coadjuvante, brilha no momento que lhe cabe.
Por fim, Peele ainda resgata o Hands Across America (campanha publicitária beneficente na qual 6,5 milhões de pessoas nos Estados Unidos seguraram as mãos ao longo caminho contínuo, em um símbolo de uma nação unida contra a fome, em 1986) lançando um comentário ácido de que este não passara de uma manifestação artística pouco comprometida com os ideias que buscava atingir. Concluo reafirmando o prazer de investigar tamanha simbologia e refletir sobre nossa postura ao olharmos para nossa família, os que estão ao nosso lado, e o país como um todo, certos que em algum grau estamos refletidos nas faltas que a sensibilidade nos permite tocar. O trauma social identificado em Nós, e que está aí, é mais aterrorizando do que qualquer filme sobre espíritos malignos, casas mal-assombradas e atividades sobrenaturais.
Brasília, 11 de abril de 2019.
Direção e Roteiro de Jordan Peele. Com Lupita Nyong'o, Winston Duke, Evan Alex, Shahadi Wright Joseph e Elisabeth Moss.