
Arábia
Arábia (Brasil, 2018)
- Você acredita em Deus?
- É mais fácil crer que existe o capeta do que Deus.
- Por quê?
- O mundo só tem matação, tiro, morte. Não tem milagre.
Com este breve diálogo os diretores Affonso Uchoa e João Dumans sacramentam o perfil da história que veremos adiante, sublinhado o fato surpreendente desta última frase ter sido dita por uma criança. Arábia é espelho do homem pobre do interior do nosso país (longe dos grandes centros urbanos), vítima das relações trabalhistas inflexíveis que tragicamente o manterá à margem da prosperidade social e cuja individualidade é sufocada pelo contexto correlato. Assim como frisei no texto Eu, Daniel Blake, o cinema também é fruto do seu tempo, e neste sentido Arábia, ao seu modo, é uma face da trajetória silenciosa de 12,4 milhões de brasileiros.
O roteiro também assinado por Uchoa e Dumans apresenta a história de Cristiano (Aristides de Sousa) sob a perspectiva da leitura de seus escritos pessoais e, portanto, da visão que tinha de si próprio. Narrado em primeira pessoa e ambientado em Minas Gerais, desenvolve-se destacando momentos de seu trabalho no campo, na construção civil e na indústria.
O que esperar, portanto, de alguém acostumado a anular-se?
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É sintomático analisar que, apesar da natureza tão confortável para expressar sentimentos e motivações quanto é o ato de escrever para si, o que Cristiano pauta da vida é sobre o trabalho, sobre o modo de vida que tinha a partir deste e das poucas relações que dele obteve. A máxima “o trabalho dignifica o homem” parece, portanto, ser a revelação norte para Cristiano que, fruto da classe pobre com o agravante da experiência penitenciária, emigra para longe do seu local natural para sobreviver como puder. O campo dos sonhos é regalia, há pouco espaço em sua rotina diária para exercer o papel de ser o que se é.
Cristiano é apenas mais um andarilho sem identidade, clone que tão facilmente faz cair por terra o conceito insubstancial de meritocracia ainda empenhada com vigor por parte da direita. Típico personagem do estereótipo mineiro, ele não é questionador, rebelde, mas observador, receptor, comandado.
Não obstante, é curioso que ao narrar aspectos de sua trajetória, o nosso protagonista afirma que o fará porque estes acontecimentos o levariam ao encontro com Ana (Renata Cabral), uma jovem dita sua grande recordação afetiva até então. No entanto, quando alcançamos este ponto da narrativa, ao menos para mim, jamais fica claro porque isto se tornou tão especial aos seus olhos posto que detém um espaço de tempo em cena tão curto de modo que seu começo e fim são corriqueiros.
Seria esta uma decisão intencional por parte dos diretores? Queriam eles utilizar um paralelismo para realçar uma possível dissintonia entre o que vivia e sentia (exatamente pela ausência de outras relações)? Ou seria apenas um problema de roteiro? Além disso, fiquei atento a uma explicação explícita das razões do protagonista que o levaram a escrever, que jamais são reveladas e que representam mais uma curiosidade minha do que uma necessidade narrativa.
O que não deixa de ser intrigante é que os personagens em algum momento vestem algo na cor vermelha, como se estivem marcados ou acorrentados pelo pessimismo. São operários, presidiários, velhinhos e até mesmo crianças que crescem longe dos pais e que são igualmente errantes, triste e enfermos, vítimas da neblina de poeira lançada pela indústria local que agride mais do que a saúde física.
Feliz do ponto de vista da escolha das músicas que complementam a narrativa cirurgicamente, o silêncio impactante e opressor com que encerra e nos mantém profundamente inquietos, é o maior atestado da eficiência de sua linguagem e da catarse então amplificada. Arábia molda-se ao atual status das reformas trabalhistas e destaca a união de classe e a generosidade entre essas pessoas que tão pouco ou quase nada tem, com menção ao Lula e o ABC Paulista.
Daí, fugindo um pouco de uma leitura técnica, me vem à mente se o Brasil de fato conhece o Brasil. Teríamos a dimensão real da trajetória silenciosa de tantos outros Cristianos? Temos o entendimento de qual pobre o nosso povo é (10% da população concentra quase metade da renda do país, segundo o IBGE)? Neste sentido, Arábia sugere que sejam mais atenciosos ao Brasil dos invisíveis e marginalizados. O que estas pessoas têm a nos dizer? Como podemos resgatá-las do isolamento social e motivá-las? O roteiro é um recorte regional mas certamente encontramos seus pares em todo país.
Aproximando-se em vários momentos do gênero documental, muitas vezes pela espontaneidade primorosa com que foram concebidos os diálogos, beneficiando-o sobremedida, Arábia é exemplo produção cinematográfica nacional de primeiro escalão, que é fruto reconhecido de estudo, que em algum momento tem problema de ritmo, não nego, e que dificilmente chegará ao grande público.
Campina Grande, 15 de janeiro de 2019.
Direção e roteiro de Affonso Uchoa e João Dumans. Com Aristides de Souza, Renata Cabral e Murilo Caliari.