
Mulher-Maravilha
Wonder Woman (Hong Kong/ China/ EUA, 2017)
Existe uma pequena passagem que para mim é desde já emblemática. Enquanto a pequena Diana assistia eufórica ao treino das demais Amazonas e empenhava golpes no ar, tamanha satisfação em vê-las, tornou-se clarividente a dimensão que Mulher-Maravilha alcançaria, sobretudo, diante das futuras gerações de meninas. Depois de tantos anos em que Hollywood abraçara os filmes de heróis com afinco em virtude de sua vocação fértil para o faturamento, apenas agora, tardiamente diga-se, pudemos encontrar pela primeira vez uma protagonista feminina deste nicho, e que assume integramente tal responsabilidade. Não obstante, me vem a mente que vivemos o contexto de discussão adequado para falar de representatividade.
É inevitável não mencionar que também outra mulher está por trás desta história. Patty Jenkins dirige-o (algo que não se vê tratando-se de grandes orçamentos) e isto parece ter influenciado algumas diretrizes. Apesar disso, Mulher-Maravilha não é feminista, tampouco inclinado a “elas”. Generoso com a humanidade por despertar sentimentos altruístas, certamente é capaz de inspirar todos os gêneros, muito além também de suas boas qualidades enquanto filme de ação.
Mas antes de discutirmos questões habituais e técnicas, precisamos valorizar a acuidade virtuosa de Jenkins na construção da persona de Diana.
Felizmente, não houve a tentativa de “masculinização” (ou militarização) para torna-la uma figura de impacto, como qualquer herói de HQ precisa ser, e que vai de encontro ao que tantos outros diretores homens já fizeram: a cafonice de imaginar que mulheres fortes na verdade são homens em corpos de mulheres! Sublinhe também o olhar respeitoso por toda esta questão evitando uma possível erotização, por exemplo, nos closes pelo seu corpo, nos seus figurinos (e no das demais Amazonas), etc. Não pense que isto é natural, porque, definitivamente, não é. Diana é jovem, nobre e feminina, e trás consigo os demais atributos que esta palavra sugere e que pautam também suas decisões, sem deixar de equilibra-se com vigor e liderança críveis.
Observe que estas são apenas algumas das estratégias que podem ser vistas/entendidas/sentidas com o passar da projeção (e não só verbalizadas). Retificando a influência de um olhar feminino sobre uma mulher, concluo desde já que Mulher-Maravilha tem a ambição e a vocação para ser o arquétipo para futuras heroínas, e desperta nas ainda infantes a aspiração pela ação da qual aparentemente foram-nas privadas exatamente pela falta de representatividade.
É de extrema valia frisarmos o quanto é significante a presença de mulheres povoando ambientes que historicamente não lhes davam acesso. Entretanto, você deve concordar que pautar nossa observação com enfoque nisto, apesar de fundamental, não seria talvez muito inteligente, haja vista que qualquer texto sobre Cinema precisa ter alicerce ao que é visto em cena. Afinal, nem sempre a intenção do autor é a mesma entendida pelo espectador. É preciso racionalizar também que o que foi introduzido acima não é via de mão dupla: poderia o filme sugerir o viés supracitado de modo brilhante e ainda assim ser de gosto duvidoso.
Mas este não é o caso.
Inspirado nas HQ da personagem homônima da DC Comics publicadas pela primeira vez em 1941, a narrativa acompanha a jornada de Diana, princesa das Amazonas, esculpida do barro e vinda a vida pelas mãos de Zeus, e que fora resguardada da humanidade na ilha Themyscira. Quando o espião inglês Steve Trevor (Chris Pine) inesperadamente surge neste local acompanhado de soldados alemães que o perseguia, Diana passa a conhecer sobre o caos que a humanidade tem vivido e parte em direção a guerra a fim de restaurar a paz entre os homens e conectar-se com os propósitos de sua criação.
Visualmente, Mulher-Maravilha é deslumbrante, e as diversas e distintas ambientações lhe conferem ares de uma grande saga. Temos a paradisíaca ilha supracitada, que remete ao clássico e às ilhas Gregas, ornamentadas com estátuas colossais inclusive; temos uma sombria Londres, de céu sempre nublado, com ruas bastante agitadas e salões elegantes; temos também o front, os campos de batalha com ruínas, névoas e lama. As lutas são coreograficamente elaboradas, excitantes e muito claras do ponto de vista geográfico (neste sentido, a câmera lenta auxilia a compreensão); são agressivas e sugerem a violência suficiente para abraçar todas as audiências sem deixar de sugerir suas consequências. Devo mencionar que o uso do seu escudo e chicote foram muito bem postos, representando também de certa forma uma novidade, e que os efeitos visuais utilizados em grande escala foram bem feitos do meu modo de ver.
Menciono ainda que Gadot brilha como protagonista, afugentando qualquer dúvida que pudesse ter sido suscitada por sua participação questionável em Batman vs. Superman. Sabe aquela sensação de que às vezes alguns atores apropriam-se de uma persona de tal modo que se tornam indissociáveis? Eu acredito que este é o caso. Gadot é a Mulher-Maravilha e merece todos os créditos por nosso encantamento. Ademais, Pine faz uma ótima parceria com ela trazendo inclusive energia e humor, e deixa sua marca também como bom ator que é.
Porém nem tudo está bem. A fotografia, por exemplo, nas cenas noturnas, é demasiadamente escura e ocasionalmente incômoda. O roteiro, tão promissor em alguns aspectos, peca contundentemente no que diz respeito a Ludendorff (Danny Huston) e a Dra. Veneno (Elena Anaya). São personagens sem motivação, sem propósito e sem um arco particular. Estes são unidimensionais e aparentemente tem na sua vilania fim em si mesma. Além disso, por vezes fiquei confuso em que grande guerra na verdade esta história é ambientada, pois já que o fazem, deveria ser trabalhado um pouco mais tal contexto.
Para encerrar, uma outra ponderação que me vem a mente, é que parece que mesmo diante de tantas qualidades, seja como uma história puramente fantástica ou seja pelo contexto já levantado, este é um filme que ainda precisa provar seu valor pois ainda é visto com certa desconfiança. E se o resultado final fosse muito ruim? E se Jenkins não se destacasse? E se Gadot não convencesse como protagonista? Acredito que as concessões que são feitas frequentemente entre seus congêneres não tem sido empenhadas com a mesma despretensão aqui.
Assim, após produzir adaptações pouco surpreendentes pós-Nolan, me parece que a DC conquistou um novo fôlego. Mulher-Maravilha tem todos os adereços comerciais dos seus pares, mas trazidos sob nova ótica. Tem fibra, paixão, humanidade e um belíssimo discurso antiterror muito bem vindo e essencial em tempos tão violentos. É um habitual filme de origem, é verdade, mas mais do que isso, em síntese ao que se pretendeu com a discussão iniciada aqui, acredito que marca também um novo momento no contexto contemporâneo – que por si já é uma respeitável pretensão.
Brasília, 16 de novembro de 2017.
Direção de Patty Jenkins. Roteiro de Allan Heinberg. Com Gal Gadot, Chris Pine, Connie Nielsen, Robin Wright, Danny Huston e David Thewlis.