
Mato Sem Cachorro
Mato Sem Cachorro (Brasil, 2013)
Escrever é cortar palavras.
Calor Drummond de Andrade.
Foi introduzida no texto sobre Praia do Futuro uma discussão sobre a habilidade de racionalizar as informações e os sentimentos a partir da experiência fílmica e transcrevê-la para a forma escrita. Não obstante, Mato Sem Cachorro, dirigido por Pedro Amorim, também me proporcionou relativa reflexão acerca desta questão. Mais especificamente, sobre a honestidade que se deve ter com quem busca uma interpretação objetiva sobre Cinema e que é elucidada pelo seguinte pensamento: apontar com ênfase os problemas é tão instigante quanto exultar as qualidades.
No Cinema, a narrativa sobrepõe-se ao enredo, isto é, não importa do que a história se trata, e sim o modo como ela é apresentada. Tendo ciência disto, o diretor esforça-se para manter-nos interessados pelo projeto (que, reconheça-se, é muito longo para o que se propõe). Neste caso, é honesto confirmar que suas qualidades estão nubladas e que o seu aparente fracasso tem ressalvas.
Roteirizado pelo próprio Amorim e por Malu Miranda, a história tem início no encontro de Deco (Bruno Gagliasso) e Zoé (Leandra Leal), em virtude de um incidente com um cão narcoléptico (condição neurológica que nos cães é sobressaltada pela perda súbita dos sentidos ao menor estado de animação). Em virtude desta doença que precisa ser assistida com cuidado, eles decidem compartilhar sua adoção e posteriormente tornam-se um casal. Dois anos depois, já separados, Guto (como o cão é batizado) encontra-se sob a guarda de Zoé, o que desperta o ressentimento de Deco (cujo fim do relacionamento ainda não superou).
Um destaque positivo, e talvez o mais sutil entre eles, é sobre a natureza do enredo. Travestido como releitura de Marley & Eu (ou qualquer congênere que são lançados com frequência, sobretudo, por Hollywood), na verdade, Mato Sem Cachorro é um filme sobre relacionamentos, no qual Guto comporta-se como alegoria da quebra da previsibilidade no aparente modelo ideal de vida a dois. De minha parte, a interpretação que surge é que esta patologia canina relaciona-se com os conflitos sobre o que é intrínseco à personalidade e o sequestro da subjetividade, sobre a interferência das convenções sociais e sobre a sensibilidade de compartilhar os problemas e superá-los respeitando-se a individualidade.
Essa tese tem sustentação a partir das observações que a locutora da rádio Ananda (Letícia Isnard) faz sobre a família ideal no início e no fim do longa. Além disso, perceba que o segundo ato inicia-se a partir da separação dos protagonistas e que, mesmo em face da conclusão (estúpida) da subtrama envolvendo o sequestro do cão, o filme não acaba. Isto porque o desfecho da trama se dará apenas com a resolução do romance de Deco e Zoé.
Por sua vez, Leal e Gagliasso oferecem ótimas performances em virtude do carisma e espontaneidade que lhe são próprios. Mais do que isso, se mantemos alguma expectativa positiva pela felicidade do casal protagonista, isto deve-se tão somente a qualidade e versatilidade de seus intérpretes já que sua concepção é falha pelo roteiro (aqui destaco o ohar melancólico e afável de Gagliasso). Todavia, esta jamais fora reconhecida por mim no aborrecido e caricato elenco coadjuvante de famosos, com demérito absoluto e irreparável para Danilo Gentili que por si já desqualifica qualquer projeto a seu nome relacionado.
A direção de arte de Tiago Marques me deixou reticente, embora também seja notável. Por um lado, enquanto Zoé usa vestidos claros e de estampas discretas (atenuando sua beleza), Deco veste roupas largas e em tons de marrom e verde que caracterizam prontamente a personalidade de cada um. Enquanto o apartamento de Zoé é amplo, iluminado e organizado, o de Deco é escuro, completamente bagunçado, e que por assim dizer, harmoniza com seu figurino, colocando-o como mais uma peça desta bizarra decoração. Por outro lado, é recorrente o uso de quadros, propagandas, objetos e carros em estilo vintage convertendo-se em anacronismo, mas não consigo identificar alguma razão narrativa que a justifique.
Empregando a recomendação de mostrar ao invés de falar, Mato sem Cachorro possui bons momentos de humor: quando exibe os devaneios de Deco (incluindo uma ótima referência a Cidade de Deus), quando suas divertidas montagens são exibidas (a reunião de Michel Teló e John Lenon é particularmente surpreendente) e quando os surtos de sono da narcolepsia canina são vistos. Entretanto, o excesso de palavrões, de estereótipos, de situações malsucedidas criadas para provocar alívio cômico e a bobagem das subtramas são evidentes e esgotam o espectador. E é por isso que escrever pode causar apatia, tanto para quem o faz quanto pra quem o ler.
Mesmo que o convite a articular sobre os defeitos seja muito mais interessante, precisamos ser comedidos. Afinal, devemos racionalizar pelo que o longa se propõe a contar, e não trata-lo com indiferença prévia pelo fato de ser uma “comédia com bichos”. O papel do crítico é buscar promover uma educação de audiovisual e guiar o leitor pela sua jornada cinematográfica mesmo que o objeto de estudo careça de referências (no âmbito das produções nacionais) a partir de uma revisão histórica e competência nos elementos da linguagem mais evidentes, como é o presente caso.
Campina Grande, 5 de janeiro de 2016.
Dirigido por Pedro Amorim. Roteiro de Pedro Amor e Malu Miranda. Com Leandra Leal, Bruno Gagliasso, Danilo Gentili, Enrique Díaz, Letícia Isnard e Felipe Rocha.