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Mãe!

Mother! (EUA, 2017)

De onde vem a inspiração? Em que lugar recôndito as ideias são cultivadas? São filhas de que mães? O que as despertam?  Darren Aronofsky (que aqui assume os papéis de diretor e roteirista) discute a construção do pensamento e a criação utilizando-se de alegorias para ressaltar a sua musa, a mãe das ideias. Confortável ao dialogar com temas religiosos e que tangem a compulsão pela perfeição e o desgaste da mente humana, também presentes nos seus últimos projetos, Cisne Negro e Noé, Aronofsky é bem sucedido ao instigar-nos à discussão e à fuga do lugar-comum.

“Mãe”, em seu sentido mais genérico, é quem provém, quem gera, quem une. “Mãe!” também é plural, se apropria de distintas interpretações que conversam entre si e provocam satisfatoriamente nossa inquietação para além do seu tempo.

O enredo é não inédito e segue a linha genérica de alguns dramas psicológicos habituais. Um casal vive numa mansão no campo cuja vizinhança é a uma densa floresta. A esposa (Jennifer Lawrence), mais jovem, passa os dias restaurando o local que sofrera avarias devido a um grande incêndio. Enquanto isso, o esposo (Javier Bardem), tem investido numa frustrada nova obra literária. A vida pacífica de ambos passa a ser abalado com a presença de estranhos que passam a visitar a casa. 

Estabelecendo uma conexão com o simbolismo a partir do princípio, com a restituição do lar onde é ambientado, Aronofisky impõe desde já o viés metafórico com o qual nos conduzirá, sendo, portanto, o primeiro convite a racionalizar sobre a sua intenção. Assim, entende-se que cada personagem ou cada manobra da narrativa está associada a alguma referência. Mas qual o motivo da escolha destas alegorias?

Em um primeiro momento, eu levanto a hipótese da metalinguagem, na qual Aronofsky aborda o olhar de um autor sobre sua obra. Nesta interpretação, a mãe é a inspiração primeira, bruta, que sofre lapidações com o processo criativo que dela decorre. Os incômodos visitantes, que provocam conflitos e deixando-a confusa, são exatamente as novas ideias. Observe que, neste sentido, a personagem de Lawrence apenas percebe sua gravidez após questionar as intenções do autor, e que do meu modo de ver já é um bom argumento para justificar esta alegoria. Observe também como é curiosa a associação da editora (aquela que edita as ideias) com uma assassina (aquela que dizima pessoas), retificando o que foi dito acima. 

- Estava lá fora? Me deixou dormindo?
- Queria ficar sozinho. Precisava limpar a mente, deixar as ideias fluírem.
- E funcionou?
- Não.
- Mas vão. Não se preocupe. Elas virão.

Assim, a obra concluída adiante, por assim dizer, e representada pelo bebê imaculado é recebida com delírio e compartilhada com os demais. À sua maneira, aquelas pessoas necessitam legitimar sua intimidade valendo-se do fanatismo expressado pela violência, apropriando-se de pertences alheios, deixando sua marca, enfim, de alguma forma buscando justificar sua posição como parte de algo maior. Enquanto isso, dissecada, a jovem aniquila-se, restituindo a vaidade do esposo e cedendo seu lugar à próxima inspiração (uma nova musa, o arquétipo da vindoura obra), que assim também o fará. Em particular, tenho predileção por este ponto de vista, que não é único.

Em um segundo momento, podemos discutir a analogia ao Cristianismo e a cristandade em si, na qual o autor é o próprio Deus: eu sou o que sou, afirma ele.  Acredito que as referências do que é visto em cena são entendidas de modo explícito (haja vista também os nomes das personagens apresentadas nos créditos finais) e por isso não discorrerei com maior interesse. No entanto, destacarei, por exemplo, como o primeiro casal a visitar a casa possui uma trajetória identificada com a de Adão e Eva: são expulsos do local de criação do autor para em seguida verem um filho matar outro. Novamente, Aronofsky concebe Deus como algo (ou alguém) sádico, que detém o amor além da razão, vaidoso para com a sua criação e incapaz de elaborar respostas.

Mas por que não dizer também que Mãe! ancora-se nos relacionamentos abusivos, no sequestro da subjetividade e nas guerrilhas solitárias dos corações acorrentados? Observe que a protagonista é incapaz de ir além da própria varanda e é profundamente conectada ao ambiente, o que atenua por exemplos as características deste relacionamento.  Agora, tão explícita quanto possível, observe que esta proposta apesar de menos elaborada, evidencia os aspectos de linguagem empregados por Aronofsky. Mais do que isso, visualmente as decisões feitas contemplam o que foi dito acima. 

Note como, por exemplo, raramente Lawrence é retratada por planos abertos; pelo contrário, a câmera é predominantemente próxima ao seu rosto, enquadrando-a a partir dos ombros. Esta decisão acertada contribui fortemente para provocar a sensação de claustrofobia e sufocamento, tão necessário para esta experiência. Além disso, há um ganho com respeito ao olhar sobre Bardem, o qual (sobretudo no primeiro ato do filme) é visto constantemente nos cantos da tela, induzindo com isto certa desconfiança sobre sua personagem. Observe também que, em contrapartida, quando Lawrence aparece por completo, está emoldurada por portas e janelas, salientando seu estado de prisão.

Coeso, o diretor guia-nos por uma montanha-russa sem fim. Mal temos tempo de entender a cena anterior que a próxima já mergulha mais fundo neste imenso quebra-cabeça. Se para alguns isto pode gerar desconforto, para mim é uma oportunidade bem-vinda de apreciar a arte. Evidentemente, nada do que foi dito foi entendido imediatamente. A capacidade de suscitar a discussão e gerar inquietudes é uma das boas qualidades que mais me agradam, em qualquer tipo de arte, ainda que a experiência da observação não seja exatamente inesquecível.

Mantendo ligeiramente viva a memória de O Bebê de Rosemary, filme de 1968 dirigido por Roman Polanski, Mãe! não se prende ao didático, a dar soluções fáceis, mas requer do espectador curiosidade e questionamento. A mãe e a casa são uma só. As contrações de seu parto são os rangidos das paredes. Passo a passo, praticamos nossa percepção ao que é narrativo, ao que é técnico e ao que não é. Contando ainda com vigorosas interpretações de Lawrence e Bardem, elogio que se estende também a Ed Harris e Michelle Pfeiffer, entendo-o como relevável, nem que seja por puro exercício cinematográfico.
 

Campina Grande, 8 de janeiro de 208.

Direção e roteiro de Darren Aronofsky, Com Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris e Michelle Pfeiffer.

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