top of page

Coringa

Joker (EUA/ Canadá, 2019)

A bruxa mexeu o caldo
Se liga aí, ô galera
Tá pingando na mistura
Saliva da besta-fera
Chacina no Centro-Oeste
E guerrilha na fronteira
Emboscada na avenida
Tiro e queda na ladeira

 

Cinema é a arte de contar histórias, de nos transpor para universos que podem simular nossa realidade, mas com suas próprias regras, com seu próprio ponto de vista sobre o que é moral e com sua própria sentença das relações de causa-e-efeito. Chamamos a isto de alegorias e têm como principal objetivo provocar, estimular o pensamento crítico. Além disso, por que não dizer que as alegorias também despertam a sensibilidade ainda que associada a elementos fantásticos? Cinema é transcender.

 

Dito isto, Coringa revela-se tão polêmico quanto possível ao apresentar uma história “original” para um personagem amplamente conhecido e querido até mesmo por quem não é familiarizado com as HQs do Batman. Coringa não adapta uma história específica da sua linguagem materna mas respeita a memória coletiva em torno deste personagem, aqui apresentado como alter-ego de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix).

 

Em 1981, Arthur é o que podemos chamar de homem desgraçado, no sentido literal do adjetivo. Posto a ilha social em que sua doença mental lhe impôs, da qual uma das características é o riso inapropriado e involuntário, é também um comediante fracassado. Após ser demitido de seu trabalho como palhaço numa agência que presta serviços para terceiros e da ruptura do seu acompanhamento psiquiátrico, Arthur é levado à loucura. As consequências de seus atos desencadeiam um movimento de rebeldia social contra a elite de Gotham, da qual Thomas Wayne (Brett Cullen) é seu maior representante.

 

Afinal, Arthur é fruto de seu meio? É subnutrido da farsa de um sistema que oprime minorias e, portanto, vítima da negligência de uma classe rica dominante? Ou é um sociopata, uma anomalia na eminência da eclosão cujo álibi tenta justificar seus atos de terror e violência? A sugestão à controvérsia enriquece a história e é a principal qualidade do roteiro, escrito por Todd Phillips e Scott Silver, que investe com sensibilidade e paciência no que podemos chamar de estudo de personagem.

 

A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não tivesse uma.

Coringa
Coringa
Coringa
Coringa
MV5BYWIxYzYxYjItZjYyMy00M2IwLThhMzMtZWM0

Como já foi mencionado em outros textos, eu costumo imaginar o bom cineasta como um domador do tempo, alguém que está constantemente interessado em estratégias que o ajude a contar sua história sem o sacrifício da exposição gratuita. Essas estratégias que precisam ser identificadas pelo expectador (nem sempre facilmente) podem surgir como elementos puramente estéticos, de fotografia, de figurino e de movimentos de câmera. Mais do que isso, podem surgir até mesmo através de músicas, nomes de personagens e da escalação de atores, enfim. Elas resgatam obras correlatas com afinidades de temas e indicam pontos-chave sem a menção explícita, apenas pela força da associação. Acredito que Phillips, que também dirige, executou este princípio de modo promissor aqui.

 

Observe que, primordialmente, temos o cenário imundo de Gotham e seu lixo – tanto o denotativo quanto o conotativo – que invade as ruas da caótica cidade. Disso se estabelece desde o princípio sua ligação com Taxi Driver, dirigido por Martin Scorsese em 1976, e que no decorrer dos acontecimentos se confirmará de fato como uma grande referência, traçando um paralelo inclusive fotográfico com filmes da Nova York dos anos 70/80. Neste sentido, observe também que a própria presença de Robert de Niro corrobora ainda mais esta associação (lembre que de Niro protagonizou Taxi Driver e que está entre os grandes filmes da sua carreira). Outras referências notórias são Um Estranho no Ninho, O Rei da Comédia e O Cavaleiro das Trevas.

 

O que você espera receber quando você atravessa uma doença mental sozinho numa sociedade que o abandona e o trata como lixo?

 

Coringa é recebido de minha parte com desconfiança e se mostra na verdade uma boa surpresa, dado que a Warner Bros. afundou seu projeto de Liga da Justiça em 2017 (ainda que este filme não se conecte aquele universo) interferindo fortemente na concepção artística de Zack Snyder (hoje, dois anos após, já temos mais do que evidências disto) na tentativa absurda de imitar o que a Marvel Studios fez com seu universo compartilhado, abrindo mão de qualquer originalidade e, em um certo grau, até mesmo respeito pelo material original. Assim, sublinho que constatar como o estúdio interpretou o recado que foi dado em 2017 e vê-lo apostar numa estética dessa natureza para um grande lançamento torna o contexto deste projeto, fora do cinema, diga-se, mais interessante.

 

A recompensa pelo investimento na dinâmica cadenciada da narrativa, investindo com paciência (enfatizo novamente) nos dilemas de Arthur como um homem que “não deveria estar lá”, tem como cereja do bolo a atuação de Phoenix. De modo evidente, a entrega do ator, que é absolutamente admirável, potencializou sobremaneira a experiência desse estudo. Apresentado com certa inocência, o desenvolvimento orgânico de seu declínio físico e mental ganham contornos assustadores pela extrema magreza de Phoenix, pela maneira como verbaliza as ideias e também pelo riso que mais parece uma possessão demoníaca. Afinal, não basta gargalhar descontroladamente. Era preciso também convencer de que Arthur não queria fazê-lo, o que é mais difícil. Do meu modo de conceber, não é exagero elenca-lo dentre as melhores atuações da década. Eu conhecia Phoenix por seus (ótimos) trabalhos em Ela, O Mestre e Vício Inerente, e não duvidei que seria uma boa escalação.

Coringa
Coringa
Coringa
Coringa
Coringa

Pontos negativos (que soam mais como observação do que demérito de fato): a música é boa, triste e muito melancólica, mas adormece os ouvidos e os demais sentidos. Alguém ainda se interessa em ver os pais do Batman morrer? Quantos filmes já não têm essa cena? Além disso, acredito que alguns minutos a menos poderia beneficiá-lo.

 

Certo de que Coringa é um “evento” muito particular no universo das adaptações dos personagens da DC (e de quadrinhos em geral), a sentença é de como questões complexas envolvendo política, minorias e saúde mental, quando bem arquitetadas, podem ter validade mesmo a partir de HQs sobre homens fantasiados. Não é a primeira vez que isso acontece; temos, por exemplo, V de Vingança e Watchmen (dentro da própria Warner Bros.) que também possuem uma iluminação neste sentido, muito embora a fuga do lugar-comum onde está estagnado este gênero, por assim dizer, não é o que temos visto. Bom seria se as experiências com esse nicho continuassem a nos provocar e proporcionar esse nó na garganta e essa sensação agridoce que Coringa traz à tona.

 

Você não tem que ser engraçado para ser um comediante?

Brasília, 4 de novembro de 2019.

Dirigido por Todd Phillips. Roteiro de Todd Phillips e Scott Silver. Com Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroe e Brett Cullen. 

bottom of page