
Como Nossos Pais
Como Nossos Pais (Brasil, 2017)
Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu desejo será para o seu marido e ele a dominará. Genesis 3:16.
A diretora Laís Bodanzky trás referências como Casa de Bonecas do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, e O Segundo Sexo, da filósofa francesa Simone de Beauvoir, ícones do pensamento feminista e da percepção do comportamento feminino no seu meio. Assim, Bodanzky reflexiona sobre a autonomia da mulher na constituição de um modelo familiar patriarcal na qual a sua própria imagem também é uma concepção do olhar masculino.
Para isto, Bodanzky entende que as raízes dos padrões femininos socialmente aceitos são muito profundas e romper com estes pensamentos significa talvez mais habitar um lugar de encontro do que de conflito. Assim, Como Nossos Pais se apresenta como uma conciliação entre gerações de mulheres com percepções distintas do seu lugar de fala.
Ao eleger, portanto, a mulher como o principal pilar do seio familiar, a narrativa escrita por Bodanzky e por Luís Bolognesi vai ao encontro, inclusive, do o último Censo Demográfico, realizado em 2010 pelo IBGE, o qual já imprimia esta configuração (hoje menos fiel à realidade dado o hiato de uma década). Em 2010, a proporção de famílias brasileiras com mulheres responsáveis pela família era de 37,3%, e esta proporção atingia 87,4% das famílias brasileiras quando o responsável era sem cônjuge e com filhos.
Em especial, podemos identificar também um diálogo entre este, de 2017, e algumas das demais obras da diretora: Bicho de Sete Cabeças, de 2000, e As Melhores Coisas do Mundo, de 2010. Há entre eles a comunhão temática sobre o relacionamento entre pais e filhos e sobre a percepção dos mesmos, uns em relação aos outros, na medida em que também são influenciados pelas convenções sociais do ambiente ao redor.

Neste, o principal rosto é o de Rosa, irretocavelmente interpretada por Maria Ribeiro (observe como o nome Rosa se aproxima do nome Nora, protagonista de Casa de Bonecas).
Rosa está na eminência dos 40 anos e equilibra-se entre as jornadas comuns às mulheres do seu tempo: matrimonial, profissional e maternal. Estas jornadas se apresentam ainda mais exaustivas posto a ausência de suporte moral, afetiva e financeira do marido Dado (Paulo Vilhena) e da mãe Clarice (Clarisse Abujamra). Após uma revelação sobre seu passado, Rosa passa então a questionar as frágeis estruturas de seus relacionamentos, assumindo-se mulher acima da provisão.
Em Como Nossos Pais, Bodansky parece compensar a falta de protagonismo feminino nos seus longas anteriores, de 2000 e 2010, citados acima, nos quais as mulheres interpretadas por Cássia Kiss e Denise Fraga mantém-se à margem das narrativas. Naqueles filmes, as mulheres são representações, como costuma ser habitual, da humildade e da renúncia.
Aqui, são as mulheres que movimentam a narrativa e também através das quais esta se legitima. A percepção das nuances dos personagens femininos pode ser constatado, inclusive, a partir das cores, num interessante exercício de observação minimalista. Com efeito, destaco Rosa e Clarice, mãe e filha que se apresentam como os pilares deste enredo e cuja tensão lhe dá substância.
Observe como o verde (razão) e o vermelho (paixão), ou gradientes destes, aparecem predominantemente associados a Rosa e a Clarice, respectivamente. No círculo cromático, vermelho e verde são cores complementares. Portanto, apesar dos sentimentos antagônicos que as impulsionam, elas também encontram harmonia enquanto espelhadas. Uma cumplicidade submersa, eu diria. Por isto, o jogo que se estabelece de caça e recompensa sobre estes detalhe se mostra tão valioso. Quando Rosa se reconforta vestindo um casaco vermelho de sua mãe, a imagem sutil amplifica a sensibilidade da sua realizadora. De fato, os elementos da linguagem cinematográfica são mais admiráveis quando não chamam atenção para si.
É nesta dinâmica que Bodanzky se deixa entender: na capacidade de reconhecer que, talvez com um grau menor de lucidez, reproduzimos aquilo pelo qual julgamos enfrentar, e que cujo cerne está eternizado na canção de Belchior, que dá nome a este projeto.
Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos como nossos pais
Em contrapartida, é decepcionante que (absolutamente) todos os personagens masculinos que povoam esta história sejam cínicos, irresponsáveis e infiéis, certamente uma concepção abaixo da capacidade criativa de Bodanzky. Apesar disso, o elenco apresenta-se de modo tão natural e coeso que associo a eles mais a natureza de peças neste tabuleiro da vida moderna.
Fazendo uso de algumas situações artificiais (sem comprometer a sua validade), reconheça-se, Bodanzky exibe uma habilidade comunicativa importante para levar adiante as discussões aqui levantadas sobre liberdade a um público maior. No tabuleiro do mundo moderno não cabe mais a figura feminina que só é respeitada quando submissa ou tolerada quando alienada.
Brasília, 15 de maio de 2020.
Dirigido por Laís Bodanzky. Roteiro de Laís Bodanzky e Luís Bolognesi. Com Maria Ribeiro, Clarisse Abujamra, Paulo Vilhena, Felipe Rocha e Jorge Mautner.